quinta-feira, 27 de setembro de 2012

LIVRO Vida de SANTA AUGUSTA


GUERRINO CESCON

História da Vida de

SANTA AUGUSTA

 

Capela de Santa Augusta

Braço do Norte – SC

2ª Edição – 2002

 

Título original: Santa Augusta

Virgine e Martire Serravallese

Tradução: Pe. Armando Pietrobelli

Revisão: Pe. Honorino Dall’Alba

 

Impressão: Gráfica CTS – Caxias do Sul (RS) – Janeiro de 2002

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A 1ª Edição do presente livro foi comemorativa ao Centenário da Capela de Santa Augusta: 1887-1987. Seu lançamento, tradução do ori­ginal italiano, fez-se no dia 22 de Agosto de 1987.

O objetivo da reedição ainda é o de manter viva a tradição e a história dos imigrantes italianos que, fixando-se no sul de Santa Catarina, aí fincaram raízes até hoje. Esta história deseja permanecer como marca de fé, de pioneirismo, de coragem e de esperança.

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Capela de Santa Augusta

Rua Santa Augusta, S/Nº

88750-000 – Braço do Norte – SC
 
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Oração à Santa Augusta

 

Ó gloriosa Santa Augusta, que para testemunhar a fé em Jesus Cristo, embora jovem e fraca, contudo com heróica fortaleza suportaste da tirania do pai o horror da prisão, a extração dos den­tes, o fogo, a roda dentada e, enfim, a decapitação, obtendo-me do Senhor o perdão de meus pecados e a graça de não mais cometê­-los; afastai de minha família e das pessoas que me são queridas as discórdias, as doenças e qualquer outra desgraça. Fazei que reine em toda a parte a verdadeira paz, para que possamos exaltar a sua infinita misericórdia para sempre convosco nos céus. Assim seja.

 

U Sigismundo, Bispo.

 

SANTA AUGUSTA
 
            Do alto do campanário do antigo santuário de Santa Augusta, guarnecido por pequenos parapeitos, suavemente descansando no declive da colina que domina o vale de Serravalle, no território de Vittório Vêneto, norte da Itália, expande-se pelos ares um alegre e festivo bimbalhar de sinos. As notas festivas e alegres, de caracte­rística harmonia, ecoam de perto e de longe, de monte em monte, de encosta em encosta, como um convite... O ouvido está preso àquele som, os olhos estão fixos sobre aquele Santuário, a mente pensa...: O que será?

            Amanhã, de todos os lugares da Marca Trevisana ou de Friúli, de Beluno ou de Feltre, de Vallata ou de Alpago, aos milhares aflui­rão a Serravalle os devotos de Santa Augusta. É a sua festa, a festa patronal.

 

Quem era Santa Augusta? Qual a sua vida?

 

Eis aqui umas breves notícias colhidas da tradição e da história.

 

1. A AGONIA DE UM IMPÉRIO

 

            Nos fins do século IV e no começo do V, o feroz Alarico, rei dos Visigodos, povo germânico, após ter destruído o Oriente e a Grécia, atravessando os Alpes, desce à frente do exército de sua nação para cercar Roma.

            Acompanham-no os mais ilustres personagens do seu reino, príncipes da nobreza e valentes capitães, que formam o seu Estado Maior e o seu Conselho de Guerra.

            A Cidade Eterna, Roma, é a meta ambicionada, centro e coração do grande império e sonho de seu futuro domínio.

Roma, de nome, é ainda a rainha e a dominadora do mundo, mas de fato não mais possui a autoridade de suas leis, nem a força de suas armas: há dezenas de anos que o império vai dissolvendo-se sob o peso de sua grandeza. O esplendor ainda é luxuriante, mas a gangrena, secretamente, se estende e destrói de maneira inexorável; a família decaiu e a sociedade declina de dia a dia para a baixeza e do vício e o amolecimento dos costumes.

            Além dos confins, exércitos de bárbaros ferozes percorrem, do começo ao fim, as regiões ocidentais na esperança de ultrapassar a fronteira.

            Os primeiros a transpor as portas da Itália, tinham sido os Quados e os Marcomanos, no ano de 167 dC, mas foram repelidos por Marco Aurélio; agora as tropas dos Visigodos, conduzidas por Alarico, avançam poderosas.

A sua invasão espalha, por toda a parte, destruição e ruínas pavorosas e a sua passagem é assinalada pelo terror e pela morte.

            Alarico avança com todas as suas tropas e ninguém lhe im­pede o caminho.

À testa das províncias e dos centros mais importantes deixa, a título de prêmio e de incentivo, alguns dos valentes capitães com a finalidade principal de reforçar os pontos mais fracos e de reprimir qualquer tentativa de revolta.

            Em pouco tempo, esses tornam-se governantes como pe­quenos reis no território que lhes fora confiado, com plenos poderes e liberdade de domínio e de comando.

 
 
2. UMA FLOR

 

            A época que procede e, portanto, que predispõe, o nasci­mento de Augusta é, para Serravalle, uma época eminentemente histórica.

Um dos personagens que mais se destacava no séquito de Alarico é Madrucco, o pai de Augusta.

            A ele Alarico confiou a região dos passos dos montes que costeiam os pré-Alpes e, que de Friúli, se estende até as planícies do rio Pó.

Madrucco preferiu estabelecer-se em Serravalle, guarda fe­chada dos passos dos Alpes, único caminho de passagem entre os montes e o mar. A escolha era muito acertada, seja pela fertilidade do solo e a salubridade do ar, como pela importância estratégica do lugar.

            Serravalle era, então, um posto militar romano de primeira ordem. Aí Madrucco estabeleceu a sua força militar; aumentou sua fortaleza, e as fortificações sobre lugares estratégicos, ditos agora montes de Santa Augusta (Marcantone) e de Santo Antonio (Monte Cuco), cercando-os de muralhas das quais restam ainda escombros e ruínas.

            Construiu um palácio principesco e tornou Serravalle uma fortíssima e inexpugnável fortificação. No alto do Marcantone vêm-se, ainda hoje, os restos da antiga torre. Aquela torre era uma fortale­za, uma obra de defesa e de domínio do tirano opressor, de quem todos se guardavam, do qual todos sentiam o maior terror, pois lhe conheciam a desapiedada brutalidade.

            Madrucco, do seu quartel, estendeu domínio e ocupou grande parte da planície vêneta e friulana, exigindo para si o título de rei e fazendo-se temer pelo seu governo tirânico e absoluto.

            O ninho parecia feliz. O rei dominava pela palavra e pela espada e, a seu lado, a jovem esposa que o seguira na invasão da Itália, lhe tornava mais alegre a vida.

            Corria o ano de 410.

            Um alegre acontecimento levava ao máximo a felicidade de Madrucco. Sua esposa o presenteava com uma filha: a estrela fulgurante da casa, a flor graciosa por eles ansiosamente esperada.

            Esperava e teria preferido um filho, continuador de sua família, que ocupasse o seu trono e, talvez até, o império em Roma.

Já tinha pensado também no nome, mas como era uma meni­na, a viu e a saudou da mesma forma como rainha e grande rainha: deu-lhe um nome fatídico, que encerrava um desejo e uma promessa: Augusta.

 

 
3. UM ANJO TUTELAR

 

            O pai olha com ternura desesperada o botão desabrochado da haste fecunda de seu amor, aperta-a ao coração... beija e torna a beijar a pequenina fronte de sua filha, acaricia aquela fronte que tanto se parece com a sua... uma pulsação viva de amor infinito envolve a pequena inocente: o pai sorri... mas a mãe chora transida de dores... Sorriso e pranto de um novo berço; porém... aqui, dentro de poucos instantes, haverá somente pranto.

            Ao dar à luz uma vida nova, a mãe perde a própria...; Augusta inicia o seu doloroso calvário: órfã no mesmo dia de seu nascimento!

            Como poderá viver... crescer sem a mãe?

 

            As almas dos inocentes e das mães são pérolas diante de Deus, que as recolhe em cálice precioso para pesá-las depois na balança da vida.

            Nada de mais caro nesta terra restou a Madrucco a não ser a tenra filhinha. Com lágrimas nos olhos e angústia no coração, imedia­tamente, pensou em encontrar uma senhora que substituísse a mãe (será possível encontrá-la?... ) e a confiou aos cuidados de uma ama de nome Cita.

            A tradição e a história coroaram de uma auréola de santidade esta segunda mãe de Augusta, guarda vigilante e verdadeiro anjo tutelar de sua virtude e de sua educação, felizmente cresceu e se formou na escola divina do Evangelho.

            Os bárbaros trouxeram consigo do Norte a religião dos seus antepassados e de sua raça; a religião de Odin, o deus da vingança e do ódio, que impõe a seus seguidores a adoração das Valquírias, as virgens guerreiras; religião inspirada em infames superstições e em monstruosas baixezas, em ritos e em festas que terminam em obscenidades tais que os cronistas do tempo não ousavam sequer descrever.

            Também Madrucco, o próprio pai de Augusta, tinha imposto a seus súditos, com a autoridade de conquistador e o fanatismo da idolatria, o culto pagão e perseguia a quantos se negassem adorar os seus deuses.

            O sangue dos mártires, em toda parte é semente de novos cristãos: e talvez, justamente, o sangue dos primeiros atletas martiri­zados por Madrucco nessa terra de Serravalle, tenha merecido que, na casa do próprio perseguidor, desabrochasse esta flor virginal, glória pura e fúlgida dessa cidade: o lírio de Serravalle, Santa Augusta.

 

 

4. OS PRIMEIROS PASSOS

 

            Na casa real, Cita gozava de toda a confiança de Madrucco e lhe era dada a máxima liberdade de ação a respeito da princesinha.

Bela em suas feições, simples e imaculada em seu compor­tamento, rica de finos dotes de inteligência e de coração, a delicada menina crescia em idade, em virtude e em gentilezas diante do pai e dos cortesãos que a admiravam e amavam.

            Nas horas de maior solidão e tristeza, o pai, que nela deposi­tava todo o seu amor e as mais lisonjeiras esperanças, experimentava

um verdadeiro conforto e uma alegria indizível em apertar ao coração a sua filha, em embalá-la em seus braços, beijá-la afetuosamente, prevendo para ela o mais róseo futuro.

            Mas quão diversos são os planos de Deus! A beleza externa, a riqueza das virtudes daquele coração, tamanha abundância de qualidades naturais e morais servem para armar uma alma feita à imagem e semelhança de Deus, para preparar a moradia e o abrigo à vinda do Senhor naquela criatura. E Deus não tardará a sua vinda.

            Cita, com tino e prudência, inteligente e perspicaz, sem que o pai se dê conta, pouco a pouco em ocasiões rápidas e oportunas, vai inspirando no ânimo, naturalmente bom da menina, a sensibilidade da prudência e do respeito, da delicadeza e do pudor.

            O palácio real, embora no cimo de um monte, é sempre um palácio real de bárbaros e de soldados galonados; mas sob o olhar vigilante e materno de sua santa educadora, o lírio cresce inconta­minado e puro e Deus protege seu anjo.

 

 

5. AS ASPIRAÇÕES DE UM CORAÇÃO

 

            Augusta já está crescida em idade e com o desenvolvimento abrem-se à vida, a inteligência e o coração. A inteligência procura o verdadeiro e o belo; o coração procura a felicidade e o amor.

            Festas e danças, músicas e cantos, convites e diversões... nada se deixa de lado, contanto que se afaste toda a tristeza da in­vejável filha; importa preencher o seu espírito de satisfação e alegria, introduzi-la ao contato com a sociedade e de pô-la em evidência: contudo, em seu coração ainda há e continua sempre um vazio insaciável e misterioso.

            Não faltam sequer as cerimônias sagradas; e o pai procura, de todas as formas, infundir na alma de sua filha a religião de seus antepassados; nem deixa que faltem à Augusta os ministros de culto e a obriga a assistir as cerimônias rituais, nas quais se incensa e se fazem votos aos falsos poderes celestes e aos deuses protetores da família e da pátria.

            Tudo parece um ambiente agradável ao sentimento e ao co­ração da menina; mas o seu espírito, pelo contrário, permanece frio e indiferente. O seu pequeno coração sente a necessidade instintiva de alguma coisa mais alta, mais nobre, mais íntima.

            Augusta, inteligente e sagaz, não acredita na fé do pai, sente que o erro domina o país e que cegou o seu pai.

            E, somente quando pode praticar algum ato de caridade para o próximo ou fazer alguma obra boa a seus cortesãos, quando pode enxugar as lágrimas de alguém que chora ou de quem sofre, ou tirar da indigência e da miséria o pobre e desamparado, é que sente o coração satisfeito e experimenta uma alegria indizível que não pode, nem sabe buscar em qualquer outro mundo.

            No palácio, onde antes reinava o ódio e a vingança, já começa a entrar um caloroso raio de luz e de amor.

O lírio da pureza e a rosa da caridade crescem juntos para entrelaçar-se, depois , na coroa da virgindade e do martírio.

 

 

6. O MILAGRE DAS ROSAS

 

            Um dia Augusta saía do palácio levando, na orla dobrada de seu avental, pão para dar aos pobres. Caminhava alegre, apressada, com aquele comportamento um pouco misterioso, que têm todas as meninas quando estão cumprindo alguma obra que julgam impor­tante.

            Na saída ninguém a impediu, nem lhe perguntaram onde ia. Mas quando descia o monte, ao meio do caminho, encontrou com seu pai e, de súbito constatou a expressão de censura em seu rosto. Aquela orla do avental dobrada a traiu: Augusta tirava alguma coisa de sua ama, ou de si mesma.

            “Deixa-me ver!” impôs decidido o pai.

            Augusta abriu a dobra e apareceu ao pai uma colorida carga de flores. Rosas brancas como a neve, rosas vermelhas como uma chama, rosas perfumadas de um odor não terreno, pétalas que pa­reciam vindas de jardins encantados.

            O prodígio repetiu-se mais vezes na história franciscana: a floração da caridade em coroas vivas é como o sorriso de Deus sobre o amor dos homens.

            Rosas desabrocham de ramos secos carregados de neve em pleno inverno quando, no caminho de S. Damião, S. Francisco e Santa Clara se separam por amor de Deus; rosas desabrocham de espinheiros ensangüentados onde S. Francisco se atirou na hora da tentação; rosas desabrocham no manto real da rainha Isabel da Hungria, quando ela, num grande ímpeto de sua caridade, leva pão aos pobres não recusando de levá-lo nas dobras de seu manto de púrpura, milagre que aconteceu aqui, com esta nova princesinha por­que o ideal é o mesmo que conduz a grande soberana e que inspirou as obras de caridade a esta pequena filha de Madrucco.

 

 

7. A GRUTA SAGRADA

           

            Narra a tradição que naqueles tempos, atrás do monte Mar­cantone, numa gruta elevada na rocha, vivia um velho anacoreta de semblante magro e macilento: um verdadeiro asceta que havia consagrado toda a vida à oração e à penitência.

Cita o conhecia, bem como não o ignoravam todos os bons cristãos de Serravalle, que a ele se dirigiam pedindo oração, escla­recimento e conselho.

         Contudo, é necessário precaver-se, agir sem que ninguém se aperceba. Secretamente, afinal, Cita encontrou-se com o eremita: falou-lhe da boa princesinha, do coração inocente e puro e da vida simples e ingênua, alma tão ansiosa e necessitada de conhecer a verdade; e à menina falou sobre aquele velhinho penitente, que se havia consagrado inteiramente ao ideal cristão.             Augusta manifestou o desejo de vê-lo e conhecê-lo.

 

 

8. O BATISMO

 

            Ao primeiro encontro, seguiram-se outros sempre mais fre­qüentes e sempre às escondidas do pai.

            O ancião, santamente sábio e iluminado por Deus, reconhece logo que tem diante de si um tesouro do qual o mundo não é digno, adivinha o estado de alma da menina, a sua angélica pureza, embora ainda não purificada pelas águas do batismo. Entendendo os perigos que cercam suas virtudes, lhe dá aqueles conselhos, aquelas suges­tões que farão dela a flor do palácio.

            Cita ajuda, favorece e completa a prudente obra do eremita.

            No palácio já são dois que rezam e adoram o Deus vivo e o quarto da princesinha está transformado numa capela simples e graciosa.

Do alto, Deus vela com a sua proteção.

            Guiada e sustentada pela graça do Senhor, Augusta, muito depressa, percebeu que o ardente desejo de conhecer, de amar, de servir a Deus não era fruto natural de juvenil curiosidade, ou mero sentimentalismo; mas um verdadeiro e superior chamado daquele Deus que já estava na iminência de tomar posse definitiva e total de sua alma.

            Contra possíveis esperanças de jovens pretendentes ou das intenções do pai, o santo ancião esclarece Augusta que ela deve guardar-se total e unicamente para o mais poderoso e belo dos filhos dos homens, pois é o único e verdadeiro rei do mundo: e revela-lhe o valor da virgindade, a beleza maravilhosa do celeste esposo e as alegrias inenarráveis de uma união que o tempo não desfaz.

            Mas o coração de Augusta desejava ardentemente... ela queria ser batizada e, após ter rezado e jejuado, pediu a graça do batismo.

            Entrega-se a Deus sobre as asas da mortificação e da oração: e Augusta mortificou-se e rezou.

            Ninguém se dava conta; ninguém sequer pensava, mas de noite, no silêncio e no segredo de seu quarto, Augusta vigiava e re­zava.

            E chegou finalmente o dia supremo e o venerando ermitão celebra o ato da regeneração cristã: a água purificadora é derramada sobre a cabeça bendita para tirar uma lama das trevas e das sombras da morte e, assim, levá-la à luz da verdade.

            E com o nome “Augusta”, o ministro do sacramento torna aquela criatura predestinada, filha adotiva do Pai, derramando sobre a fronte juvenil a água da graça e da vida.

            A seu lado, Cita assiste exultante de santa alegria.

            Contra as tentações e os perigos da virtude, contra as difi­culdades e as lutas para a sincera profissão do próprio Creio, Jesus Cristo instituiu os sacramentos quais defesas da virtude e força para a luta.

            O santo eremita assim, nesta escola, educou e formou uma filha espiritual.

            E sobre a fronte já responsável, o Bispo traçou com o Crisma da salvação, o sinal da Redenção e aquele coração virginal tornou-se morada de Cristo-Hóstia, o pão dos fortes e o vinho que faz germinar as virgens.

            Os meses e os anos que se seguiram não têm história, ou melhor, sua história a escrevem somente os anjos para que seja anotada no céu: história de oração e caridade.

 

 

9. SUSPEITAS DE MADRUCCO

 

            A vida corre serena no palácio de Madrucco. Augusta corres­ponde com total e íntima adesão de toda a sua alma elevada para o alto, ao amor e predileção do Senhor.

            Madrucco também está contente com sua filha. Ignora que ela foi batizada; nem sequer pensa que no palácio haja possibilidade de fugir ao controle e à sua vontade única, e está bem longe de pen­sar que na sua corte haja quem reza e adora aquele Deus que ele persegue. Todavia está alerta e, às vezes, a dúvida o assalta.

            Há tempo observa o comportamento reservado de sua filha, constata o seu menosprezo cada vez mais evidente a respeito dos ritos das divindades paternas, chamam-lhe a atenção as suas freqüentes e prolongadas ausências do palácio e revela uma afluência sempre mais crescente de pobres que vêm em procura de Augusta.

A dúvida se torna cada vez mais forte e insistente. E se resolve penetrar no mistério que envolve sua filha, investigar as causas daquilo que está acontecendo. Porque, certamente, Augusta deve guardar um segredo. Pouco a pouco a dúvida torna-se suspeita, a suspeita... certeza.

            No segredo de sua corte, um dia, confiou seu estado de ânimo a um dos seus servos mais fiéis e o encarregou de vigiar atentamente Augusta, espreitar-lhe os passos, as ações, as amizades, sondar-lhe se possível os pensamentos e os sentimentos.

            Uma comissão encontrou o executor de confiança e o cúmplice cruel. Augusta estava sendo observada passo por passo em toda a parte, de dia e de noite.

            Um dia desceu do monte às escondidas e sozinha, ultrapassou a muralha, iludiu a guarda e se encaminhou para a cidade ao pé dos montes.

Talvez levasse, como muitas outras vezes, o pão aos seus pobres ou fosse visitar os doentes, os sofredores, os perseguidos de seu pai?

            No ar reinava o grave silêncio que precede a tempestade. Desta vez sentiu forte, irresistível a necessidade de rezar antes de cumprir as suas obras de misericórdia e foi buscar luz e força na igreja da cidade.

            Entrou, pôs-se de joelhos, recolheu-se profundamente e rezou.

            Rezou como nunca havia feito. No seu íntimo, um pressen­timento carregado de escuridão e de ameaças, algo de grave na iminência de lhe acontecer.

            Cercada de silêncio, Augusta, ajoelhada, reza absorta no Se­nhor e não percebe que a porta se abre devagar e que alguém está entrando... é o enviado do pai, o espião, o traidor...

            Poucos minutos depois Madrucco estava informado de tudo.

 

 

10. NO CÁRCERE

 

            Estava ainda toda recolhida em sua oração, quando, em seu derredor, ouvem-se passos e vozes de pessoas armadas.

            Levantou a cabeça: diante de si viu, ameaçador e brutal, o enviado do pai que a obriga a levantar-se e a segui-lo. Muda e silen­ciosa, entre soldados, foi levada para a corte. No coração havia a paz dos inocentes; na alma, a força dos mártires; nos lábios, a oração dos cristãos: “Pai Nosso que estás nos céus... seja feita a tua vontade”.

            Depois de meia hora já estava na presença do pai: ele está fora de si, o coração bate como as asas de uma ave de rapina em perseguição da presa.

            Alterado e contrafeito no rosto, lívido e fremente de raiva, agitadíssimo, Madrucco, do seu trono, começou a lançar sobre Au­gusta toda a sua indignação diabólica, intimidando-a com medidas terríveis caso não retratasse e reparasse a traição à sua religião e se não abandonasse a execranda superstição dos cristãos, para adorar Odin e os outros deuses da nação. Depois, quase não acreditando em si mesmo, com um sorriso de ironia: - Pois então, até mesmo a filha do poderoso rei Madrucco aceita a religião dos escravos? – Sim, meu pai – responde Augusta calma e serena. Compreendi, por graça do Senhor, qual é a verdadeira religião, e abracei-a, sou cristã.

            - Ser cristã – interrompeu-a, com um sorriso de desprezo, o pai – que grande sabedoria! Renunciar a tudo o que agrada: a glória, as diversões, as delícias da vida, as riquezas... na flor da juventude, quando mais atraente te sorri o futuro. Estúpido erro, na verdade, esse teu!

            - Erro é o vosso, - respondeu a jovem – vós caminhais sem pensar no amanhã, na vida futura que vos espera; vós adorais deuses perversos e mentirosos que vós mesmos fabricastes com vossas mãos e conforme os vossos caprichos, enquanto o Deus vivo e verdadeiro, que existe desde a eternidade, que criou o universo, é Jesus Cristo que...

            - Chega de mentiras: antes prepara-te para sacrificar aos deuses.

            - Eu adoro o verdadeiro Deus – insistiu a filha – minhas mãos não podem oferecer sacrifícios às falsas divindades.

            - Eu, teu pai e teu rei, te imponho: deverás obedecer.

            E, mais ainda enfurecido, cego de raiva, ofendido na sua sensibilidade de pai e no seu amor próprio de rei, quereria investir logo, ele mesmo, contra sua filha, matá-la com suas próprias mãos para reparar a afronta aos seus deuses; preferiria vê-la morta antes que neófita de uma outra religião.

            Levanta-se subitamente, desce de seu trono irritadíssimo, murmura ainda umas frases em tom de ameaça, depois afasta bru­talmente de si Augusta, como se não fosse mais sua filha; obriga-a a trocar suas vestes reais e, acorrentada, manda que seja jogada no cárcere mais horrível do seu palácio:

            - Lá embaixo invoque o seu Cristo: Veremos se será capaz de livrá-la do meu furor!

            Sozinha, entre as imundícies do cárcere, com duros cepos aos pés, pesadas correntes nas mãos, sobre um duro tablado e um pouco de palha, sob as ameaças de sofrimentos mais graves que a aguardavam e a perspectiva de atrozes tormentos que lhe podem sobrevir, Augusta ajoelhou-se e rezou ainda mais. Passou toda a noite em oração e ao amanhecer, quando o sol já estava alto no ho­rizonte, Augusta continuava recolhida em profunda oração... parecia um orante!

            Talvez em sua vida nunca rezara com tanto fervor. Madrucco, ao invés, havia passado uma noite agitadíssima: uma luta angustiosa e tormentosa apertava seu coração; luta entre a voz do sangue e a fé de seus antepassados; entre a honra de sua raça e a sua dignidade real.

            Prevaleceu o fanatismo e a soberba pessoal. No dia seguinte, os espiões já estavam espalhados por todo o palácio e pela cidade ao pé do monte para descobrir os culpados da perversão de Augusta.

            Madrucco, cego de furor, ordena a morte de todos aqueles que eram reconhecidos como cristãos: o título e a dignidade de cristão valem a sentença de morte.

11. O DRAMA ÍNTIMO DE DOIS CORAÇÕES

 

            Por volta das onze horas do mesmo dia os batentes da prisão se levantam. Uma frágil figura de mulher, aproximadamente com a idade de 50 anos, apresenta-se junto à porta.


Na penumbra do subterrâneo, Augusta reconhece Cita, a aia fiel. Um instante e as duas inseparáveis criaturas se abraçam e as lágrimas se misturam e caem para banhar os instrumentos do martírio comum.

            Após ter desabafado, Cita, fazendo violência a si mesma, entre soluços, disse:

            - Augusta, querida, papai te aguarda em seu aposento parti­cular; quer falar-te, confia em Deus e coragem!... Nós rezaremos por ti. Também o santo eremita, os cristãos da cidade, os teus pobres e as crianças que nessa manhã chegaram mais numerosas ao palá­cio, elevam súplicas a Deus por ti. Sê forte. É este o momento de demonstrar que amamos, de verdade, aquele Jesus, que tanto sofreu por nós.

            - Obrigada, boa Cita, confio muito no meu Anjo da Guarda, mas vós rezai e fazei rezar para o meu pobre pai!

            E se beijaram pela última vez.

            A porta se abre novamente de par em par. Entram os guardas e também algumas criadas. Augusta, livre das correntes, é revestida com suas vestes reais, e, cercada de honras da corte, conduzida à sala privada do pai.

            Quando estavam a sós, pai e filha, os olhos do pai encon­traram-se com os olhos da filha e se abaixaram; depois o progenitor rompeu o silêncio com um grande suspiro, e, com modos paternos, com a voz que procurou tornar terna e afetuosa, com o coração nos lábios, falou a Augusta, a sua única filha, caríssima.

            Apelou para seu coração de pai que em sua filha havia posto a sua esperança de honra e glória para o futuro, a esperança de conforto e de alegria em sua velhice; recordou-lhe a mãe que já não existia... a mãe que passara a outra vida no mesmo dia de seu nascimento, lembrou-lhe todas as atenções e solicitudes para que crescesse como uma princesa... o vazio deixado pela morte da mãe compensado pelos seus cuidados amorosos; apelou para o coração e para o sentimento da filha fazendo-lhe ver também o sofrimento e a dor que cansava o seu pai já velho e só...

            Depois, com ternura de comover acrescentou: “Foi um capricho teu, um momento de fraqueza e de loucura!...”

            Deixaste-te enganar por alguém que se valeu da tua tenra idade e inexperiência... E cometeste um horrível crime voltando as costas e negando a fé àqueles deuses imortais que deram a teu pai tantas esplêndidas vitórias, o poder real e este castelo inexpugnável e a ti um sangue tão glorioso, a saúde que gozas, a beleza que te adorna e tantos outros dotes que te tornam tão atraentes e bela que já muitos jovens de famílias principescas me fazem calorosos pedidos para ter-te como esposa... Por que queres então continuar cravando no coração de teu pai este agudíssimo espinho? Augusta querida, volta à religião de teus avós, ao culto de Odin e dos outros deuses de nossa nação... e eu esquecerei tudo... Ofereceremos um grande sacrifício para aplacar a cólera do nosso deus!... e tudo ficará sepul­tado no silêncio!...

            Toma pela mão Augusta, acompanha-a diante do tripé, aos pés da estátua de Odin e a convida a fazer sua oferta:

            “Eis o incenso; basta que tu tomes alguns grãos apenas e os jogues no tripé...”

            Augusta reza em silêncio... adora o seu Deus e a graça celeste lhe infunde nova luz, nova força. Um calafrio de horror perpassa por seu belo semblante. E eis que a mocinha se levanta decidida, firme, embora a fragilidade do sexo e da idade e, sobre o fogo, com os pe­quenos dedos, traça o sinal da cruz.

            O pai empalideceu. No seu olhar feroz, no semblante carre­gado, revela-se um martírio cruel, uma dor atroz que o estraçalha, uma humilhação que exige vingança.

            Augusta lê nos olhos e no rosto de seu pai o terrível drama. Também em seu coração trava-se o mais tremendo combate.

Mas, naqueles momentos dramáticos, voltam à mente de Augusta as palavras do Evangelho que o eremita lhe havia revelado nos breves colóquios em preparação ao batismo: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim” e os sentimentos do coração preferem a voz da consciência, do dever, da fé.

            O seu rosto banha-se em lágrimas, experimenta toda a amar­gura da dor; mas do espírito aflui firme, inconfundível a expressão de uma forte e irredutível vontade. O pai insiste ainda pela última vez: “Ou o sacrifício aos deuses ou a morte”; mas a filha, com o rosto er­guido, o olhar cheio de luz, o semblante muito pálido, os olhos fixos nos olhos do pai, responde pronunciando o seu juramento:

            “Papai, não posso! Prefiro morrer antes de trair minha fé”.

            O vibrante protesto, o solene juramento da jubilante menina agradou ao Senhor como dulcíssima prova de perfeito amor; lá no alto os anjos recolhem as primeiras flores para tecer, sobre a cabeça da virgem sábia, da virgem forte e pura, uma fúlgida coroa de glória imortal.

            As últimas palavras da filha feriram o coração do pai como lâ­mina cortante!... qual animal selvagem ferido, levanta-se num ímpeto, range os dentes, cerrando os punhos, e jura vingança; amanhã todos verão que o cruel rei Madrucco, para honra da família e para culto a seus ídolos, não sabe poupar a única filha, porque esta se negou a queimar um grão de incenso aos deuses falsos e mentirosos.

Ainda um dia para refletir... Um dia é sempre breve... mais breve ainda para quem aguarda a morte.

            O martírio de Augusta parece incrível; mas a história do mal e das perseguições nos dão ainda exemplos tão diabólicos de inaudita ferocidade; e nos convencem que a crueldade, a barbárie de um ho­mem pode chegar ao ponto de sacrificar até a própria filha, quando este homem monstruoso levantou em seu coração um trono ao espírito das trevas e às baixas paixões.

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Os dois dentes extraídos cruelmente da boca de Augusta foram então recolhidos. Um deles conserva-se no Santuário, numa valiosa custódia de vidro, lavrada em prata em forma de relicário. O dente conserva até hoje uma beleza e uma alvura verdadeiramente admiráveis e na sua raiz parece ainda vermelho de sangue.

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12. O PRIMEIRO SANGUE: A EXTRAÇÃO DOS DENTES

 

            Na manhã seguinte Augusta está de novo diante do pai. Pas­sou a noite em união com seu Deus porque, na amargura que lhe aperta o coração, mais profunda torna-se a sua piedade.

            Cala, reza e oferece o doloroso martírio pedindo força e cora­gem para suportar a prova: aquela prova que ela sente aproximar-se como um furacão.

Eis o pai cruel, eis a fera que renegou o sangue. Passou a noite pensando que tormentos haveria de pôr em prática para privar a filha da luz e do conforto daquela fé.

            A vítima está em sua frente como uma presa já alcançada, vencida pela brutalidade selvagem da força.

Enfurecido pela humilhação do dia anterior diante da confissão da filha, ordena que arranquem todos os dentes de Augusta.

            Os dois soldados, encarregados de executar a ordem cruel, estão prontos, com a grosseira torquês de ferro entre as mãos ásperas.

Augusta sozinha, à parte, aguarda ajoelhada: os lábios em oração, o vestido humilde, os cabelos soltos, a vontade decidida.

            Seu aspecto é sereno, confiante; alguma coisa de celestial a envolve toda. O pai também está presente; o olhar turvo e ameaçador, a fronte enrugada, o coração em agitação.

            Os presentes estão com espírito suspenso, o rosto pálido, os olhos esbugalhados. Os dois carrascos aproximam-se barbaramente da delicada menina: um a agarra de modo brusco e grosseiro pela cabeça e a mantém imóvel entre suas robustas mãos, enquanto o outro introduz na boca a rude torquês e lhe arranca, sem piedade, dois de seus alvos dentes.

            Dois fiozinhos de sangue escorrem da boca da mártir, tingindo as suas vestes e vai ensopar o chão, enquanto a língua da cândida mocinha não deixa de pronunciar os doces nomes de Jesus e de Maria e a sua mente está concentrada no pensamento das angústias experimentadas pelo divino esposo em sua paixão e morte de cruz.

            O pai aguardava a rendição; não compreendia como sua filha, habituada às delicadezas e às comodidades da corte real, de tão tenra idade e delicadeza de afetos fosse tão forte e decidida.

            Depois da tortura, Madrucco mais irritado que nunca, mandou encerrar novamente a filha no cárcere, sem dignar-se de dirigir-lhe uma palavra sequer, sem importar-se de aliviar suas dores, nem de trocar-lhe as vestes ainda embebidas de sangue.

            Negou-lhe também a consoladora companhia da fiel aia, e a assistência e atenção das criadas.

            Não restava a Augusta nada mais senão o pequeno crucifi­xo que lhe havia dado o santo eremita no dia de seu batismo e ela carregava sempre sobre o coração como preciosa relíquia e doce recordação.

Um olhar para aquele crucificado que nascera numa gruta, vivera no silêncio e na humildade, morto sobre a cruz depois de haver proclamado: “Bem-aventurados os que sofrem por amor da justiça”.

Beijou-o e tornou a beijá-lo com toda a efusão da alma e es­colheu sofrer com Ele, morrer também com Ele sobre a cruz, antes de traí-lo.

Com o mesmo ardor de Jesus, ela parece preparar-se para o caminho da cruz.

            O sangue dos mártires foi sempre semente de novos cristãos: também Augusta confia que o seu sacrifício, unido ao de Cristo, será fecundo de bem e obterá de Deus a graça a tantas almas que ainda estão incertas entre as trevas e as sombras da morte.




13. A PROVA DA FOGUEIRA

 

            A noite estende lentamente o seu manto de sombra e de silêncio sobre a terra. Envolve na escuridão as colinas e a cidade.

            No palácio real Madrucco odeia, Augusta reza.

            Decorridos poucos dias, um novo suplício está preparado: a fogueira. Sob a ação das chamas a delicada menina certamente não resistiria e, finalmente, se teria rendido.

            O pai desumano mandou preparar, no mato próximo, uma pilha de lenha seca, amontoando-a entre duas grossas árvores.

Para lá é conduzida a menina e, amarradas as mãos ao tronco das duas árvores, foi erguida sobre a pilha de lenha para ser queimada viva.

            O desejo da palma e da coroa do martírio é grande no coração da casta esposa: toda a sua alma está voltada para o céu, na oração pede ajuda ao celestial esposo.

            Augusta reza; os soldados obedecem à ordem do pai.

            “Mas a quem reza aquela menina? Qual é seu Deus? Qual o seu poder?”

            Augusta reza. Demorado é o colóquio com o Senhor, maravi­lhosas aparecerão as conseqüências.

            Acende-se a lenha; as chamas levantam-se em volta da san­tinha em oração; atingem de leve as suas vestes, afastam-se dela e lhe formam ao redor da cabeça uma grande auréola. Também a santa mártir se acende de amor e se aquece sempre mais do amor de Cristo.

            Lembrando-se que outros mártires deram testemunho de fé, reflete consigo mesma que está, com eles, participando de suas lutas e alcançando o mesmo triunfo.

         Ela já está no céu e para lá já transferiu o seu coração des­prezando todos os tormentos, não chama de “fogo” ao fogo mas de “brisa refrigerante”.

            A menina está ilesa. Através das chamas vê-se a figura delica­da, absorta em êxtase, olhos voltados para o céu, semblante radioso.

            O povo assiste espantado ao celeste prodígio. O pai está irritado, impressionado.

            Quem protege e defende a sua filha? Uma força secreta e misteriosa superior ao poder humano de seu pai está com ela: é esse o Deus de Augusta? Nem sequer o suspeita, o cruel progenitor, ao contrário, pensa em feitiços e malefícios.

            Também os ilustres personagens que o cercam atribuem isto a secretas forças ocultas: é graças a um mágico artifício que estes cristãos permanecem fiéis ao seu Deus além de toda e qualquer ex­pectativa humana. Mas pode uma magia realizar uma tão estrepidosa maravilha?

            Era, ao invés, de novo o milagre de Sidrac, Misac e Abdêna­go, jogados na fornalha ardente pelo ímpio rei Nabucodonosor; era o milagre de Sta. Martinha, de Sta. Inês, de Sta. Catarina de Alexan­dria para quem as chamas, respeitando a virgindade das esposas do grande Rei, as deixaram intactas; era o milagre de muitos outros Santos e Mártires de sua idade, que na Igreja se renovava em uma jovem virgem e mártir desta predileta terra de Serravalle.

                Sobre a lenha as chamas da fogueira preparada para Augusta, pouco a pouco se apagam e sobre as cinzas e os carvões apagados, com as mãos ainda amarradas aos dois troncos de árvores permane­ce, com sua veste resplandecente e intacta, a bem amada do Senhor.

            Augusta estava ainda extasiada numa visão do paraíso, quan­do os soldados a desamarraram e a livraram.

            Muitos dentre os cortesãos mesmo entre os carrascos, profun­damente comovidos, e os mais obstinados entre o povo começavam a acreditar.
 
 
 
 

14. A RODA DENTADA

 

            O pai humilhado pelo heróico comportamento da filha, total­mente vencido pelo milagre, não sabe e não quer resignar-se à derrota.

            O rancor da ira perturba os seus sentimentos, o orgulho ob­ceca os seus olhos, o seu olhar lança ódio e paixão. Augusta deve render-se.

            Madrucco o exige e a sua soberba vontade torna-se cada dia mais obstinadamente firme e teimosa.

            Em seu íntimo entrechocam-se o sentimento do amor paterno e o juramento de vingança.

            E pensou em um novo suplício.

            Fez preparar uma roda de moinho, toda equipada com facas afiadas e pontas de ferro cortantes e, recurvada ao seu redor, ordenou que fosse amarrada a filha.

            Este era um instrumento de martírio muito em uso entre os povos bárbaros. Sob o peso da roda e ao contato com aquelas pontas agudas e penetrantes nas carnes, o corpo seria estraçalhado, triturado, por entre dores indizíveis e convulsões incríveis.

            Madrucco confiava muito neste novo tormento e ele também quis assistir: o seu olhar e o seu ânimo estão carregados de ira e de rancor.

            Augusta foi tirada de novo da prisão e conduzida ao lugar do suplício. Lá foi deitada e fortemente amarrada sobre as pontas da roda sem nenhum cuidado, nem compaixão. Não se queixou, nem deu um sinal sequer de mal estar e de dor.

            Quão semelhante era ao Senhor pregado na cruz! A Ele se dirigiu em oração sorrindo com toda a efusão de espírito, para que lhe desse a força de suportar vitoriosamente a duríssima prova.

            A horrenda tragédia vai começar; estão prontos os executo­res encarregados de fazer girar o eixo da roda e precipitá-la encosta abaixo; o pai está atento para receber em seus braços a filha que haveria de pedir ajuda e proteção.

            Mas a Divina Providência interveio com um novo e estupendo milagre. Como um dia, em Jerusalém mandou o seu Anjo para tirar S. Pedro dos cepos e livrá-lo da prisão na qual os judeus o haviam encerrado, assim agora mandou um anjo em socorro de Augusta.

            Apareceu o divino mensageiro, fulgurante de luz e ameaçador em seu semblante, sobre o monte que já estava na iminência de tingir­-se do novo sangue cristão e, armado de uma grande espada, de um só golpe partiu a roda infame, deixando desconcertados e apavorados todos os presentes.

            Há um tumulto entre o povo. “É uma santa a filha de Madrucco ou é uma bruxa?   E se a sua fé fosse verdadeira?” interrogavam-se inquietos.

Renunciar à glória, às riquezas, às alegrias da juventude – que religião estranha! Contudo, somente uma força superior e divina é capaz de realizar semelhantes fenômenos!...

            E a dúvida inquietante perturba as almas dos pagãos, agita as consciências, abala as antigas superstições e prepara para fazer parte da nova religião do verdadeiro Deus.

            Não é pois de estranhar se muitos, diante de tão estupendos e repetidos prodígios, se converteram à fé cristã e depois, abraçando a religião católica, confessaram publicamente que o verdadeiro Deus, Senhor do céu e da terra, era aquele de Augusta.

            Madrucco deu-se conta, percebeu que perdia terreno e obtinha o efeito contrário. Compreendeu ele também e convenceu-se de, na verdade, encontrar-se diante de algo sobre-humano que agia nela; mas, ao invés de acalmar-se e dar-se por vencido, tornou-se mais furioso do que antes.

            Sentiu-se profundamente humilhado, pois fora vencido por uma menina e, pior, sua filha.

            Madrucco, tendo já chegado ao cume da tolerância, não mais procura convencer, nem mais ameaça sua filha. A resistência física e moral de Augusta parece invencível, irremovível, compreende que quando está acontecendo não é por força humana: um espírito mais poderoso age do alto, mas ele, humanamente, deve vencer: por isso Augusta deverá ser decapitada.

Amanhã, no azul do céu, brilhará uma nova estrela. Augusta já está madura para a glória do martírio.

 

 

 15. A PROVA SUPREMA

 

            A prisão, as promessas, as ameaças, em nada tinham mudado a decidida vontade de Augusta; a dor cruel provada na extração dos dentes não havia provocado a menor queixa; as chamas tinham per­dido o poder de queimar ao contato com seu corpo virginal e a roda armada de pontas e de lâminas, antes mesmo de ter-lhe provocado a primeira escoriação, havia-se quebrado.

O pai estava enfurecido. O que lhe resta tentar? A espada, instrumento ao qual todos os tiranos bárbaros tiveram que recorrer para martirizar a vida dos santos, quando por nenhum outro meio o infame conseguia seu intento desejado.

         E a espada cortará a serena cabeça de Augusta.

            Que mais lhe restava para o seu Deus? A vida. É o supremo sacrifício.

Fazendo uso de sua autoridade paterna e real que dá direito sobre a vida e a morte de seus súditos e mais ainda, sobre sua própria filha, culpada de ter violado a religião dos antepassados e perseve­rante seguidora da detestada religião adoradora de um crucificado, Madrucco decreta a morte para sua única filha.

            Nenhum poder humano teria podido subtrair-se à lâmina de sua machadinha de guerra e ele ordena ao carrasco que se prepare para a decapitação.

            A hora do martírio é chegada.

            Já despontam os primeiros albores do dia e é uma aurora tão radiante, suave e da cor de pérola, que parece o prenúncio de um dia divino, de um sol que não desejava mais ter ocaso.

            Tudo já está disposto para a execução. Como o Cristo cami­nhou para o Calvário seguido de uma fria escolta, assim Augusta é acompanhada de uma multidão irada de carrascos até o lugar onde será executada.

            Cena imponente e gloriosa: contemplavam a mártir os anjos e algumas pessoas mais ligadas a Cristo do que à terra: os olhos fixos na jovem não para ver o fim da luta, mas na espera ardente de acolher a vitoriosa menina.

Augusta ajoelha-se humilde como uma ovelha preparada para o sacrifício e aguarda que o pai a execute.

            A seu lado há um carrasco com o machado na mão; na frente, o pai com os personagens mais distintos da corte, mais ao longe, os criados, os cortesãos, os soldados, o povo que assiste, mas se agita, não aprova: vê e cala porque esta é a hora das trevas.

            Tinham-na visto, a princesinha, passar pelas ruas da cidade, o Anjo da terra, fazendo o bem e dando exemplo a todos, tinham­-na admirado na sua modéstia e na sua beleza virginal, e todos, até mesmo os maus, tinham-na amado.

            Os agitados acontecimentos dos dias precedentes haviam provocado a curiosidade do povo cercando a radiosa menina de uma auréola de mistério e de sobrenatural; quando a notícia se serpeou secretamente entre a multidão, sobre a prova final, o povo acorrera para poder presenciar tudo.

            E entre a multidão havia também os poucos cristãos de Serra­valle que haviam permanecido fiéis diante do vexame da perseguição, havia os pobres, os prediletos de Augusta e, talvez houvesse também Cita, todos a animavam com suas secretas e silenciosas lágrimas.

            Está lá o pai, torturado no coração pelo verme do remorso que o corrói continuamente, por uma ínfima aflição que lhe obscurece a mente.

            Naquele momento supremo Madrucco aproxima-se da filha, pela última vez, propõe-lhe a liberdade, faz-lhe a última proposta de vida ou morte...

E a filha, embora diante da morte, recusa, repele as vãs pro­messas do pai e com fé inabalável e firme esperança renova asua afirmação de amor: “Ó Senhor, antes de morrer!...” E os lábios mur­muram uma prece.

            É a última oração: prece que lembra muito bem a de Jesus sobre a cruz em favor dos seus algozes, de Sta. Estevão para os seus apedrejadores e, ainda de milhões e milhões de mártires da Igreja Católica de todos os tempos e de todos os lugares, que sempre tive­ram nos lábios a palavra de perdão para os próprios perseguidores: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.

            É a oração de uma filha que morre, de um mártir, de uma santa sacrificada pelo próprio ímpio e cruel pai.

            O algoz aproxima-se para vedar-lhe os olhos e amarrar-lhe as mãos; mas a heroína o previne: os olhos puros, límpidos, lumino­sos estão fixos nos

céus; as mãos se elevam para o alto num ato de abandono total e completo à vontade de seu Deus que mais uma vez teria podido defendê-la e salvá-la, em seguida se põe em atitude de oração, inclina a cabeça delicada, a cabeleira ondulante, e apresenta o pescoço ao golpe do machado.

            O carrasco sente um tremor... vacila um momento antes de vibrar o golpe, contempla aquele anjo em oração. O triste silêncio dos poucos instantes que se seguem é quebrado pelo golpe seco do machado.

            A cabeça da mártir cai truncada e as vestes tingem-se no pró­prio sangue; borbotões jorram tumultuosos riscando de um vermelho quente a cor de chumbo da rocha, ensopando de sangue as encostas do monte sagrado.

            Os anjos assistem invisíveis ao heróico sacrifício e cercam em revoada a nova eleita, enquanto a alma santa de Augusta aureolada do martírio se evola para o Criador.

 

 

16. AQUELE TÚMULO É UM ALTAR

 

            As últimas gotas de sangue já se escoam raras e com dificul­dade daquele corpo decapitado e o cadáver fica abandonado numa poça de sangue coagulado.

            O pai desce soturnamente da montanha: a mão está suja de sangue, o sangue de sua filha; o coração pesado, a respiração ansiada.

            Alguma coisa de novo desperta no fundo da alma que ele não conhecia. É remorso?... É dor?... Não tem tempo para examinar.

            Os cristãos, os convertidos por ela, os seus benfeitores que tinham assistido aqui e acolá, entre a multidão, comovidos e admi­rados, cuidam com prudência para que o corpo precioso não seja roubado.

            E, quando finalmente descem as sombras da morte, ajuda­dos pela escuridão, penetram, em silêncio na fortaleza e, com a fé e a piedade dos primeiros cristãos, dirigem-se, às escondidas, para o lugar do martírio, com paninhos brancos, com lenços, recolhem o sangue coagulado ou a terra solta ainda embebida por ele, levam-no para casa como preciosa relíquia que conservam zelosamente.

            O culto aos mortos era sagrado também entre os bárbaros: o corpo de Augusta, por ordem do rei, certamente foi sepultado no túmulo que Madrucco mandara construir para si na fortaleza.

            E quando mais tarde Madrucco voltar à sua nação no Norte, donde viera, o túmulo de Augusta, muito depressa, será meta de contínuas peregrinações... tornar-se-á um altar...

Sobre aqueles ossos venerados, será levantado um oratorio­zinho aonde se   dirigirão os cristãos para conseguir luz e força nas lutas pela própria fé, para pedir ajuda e graça nas dificuldades da vida, para lá se dirigem as jovens para pedir orientação e proteção para a guarda de sua pureza e de sua virtude, chegarão centenas e centenas de doentes para pedir curas e saúde.

            Por sua intercessão, pecadores endurecidos na culpa se con­vertem, pessoas depravadas pelo vício se reabilitarão, verificam-se curas inesperadas, obtêm-se graças materiais.

            Era natural, portanto, que sobre aquele túmulo fosse edificada, desde então, uma capelinha, que depois se transformou num orató­rio mais amplo que, juntamente com os venerandos restos mortais, recolheu em abrigo também as relíquias da aia e de outros mártires de Serravalle.

            Em volta do sacro depósito das relíquias, zelosamente guar­dados, nasceu e se desenvolveu a devoção e o culto à Sta. Augusta.

            Assim, pouco a pouco, quase insensivelmente, começa-se a render a Augusta aquela veneração e aquele culto que só convém aos santos. Circunda-a pela auréola de santidade, passou de pai para filho a história de seu glorioso martírio e o povo a proclamou “santa” antes que a Igreja viesse a reconhecer, solene e oficialmente, o culto.

 

 

17. A APROVAÇÃO DO CULTO

            Do antigo estatuto de Serravalle de 1360 e ainda de outros docu­mentos daquela época, observa-se como desde tempos antigos se venera Augusta como santa e se celebra sua festa, todos os anos, aos 22 de agosto.

            Este culto foi sendo cada vez mais difundido graças à aprovação dos Bispos e dos Patriarcas que o enriqueceram de privilégios e de muitas indulgências.

            Em 1452, o bispo Pedro Lioni de Cêneda, por ocasião da consa­gração do atual santuário, permitiu, pela primeira vez, que os ossos de Santa Augusta fossem expostos solenemente à veneração dos fiéis e a urna, na qual fora colocado o seu corpo fosse usada como mesa de altar sobre a qual se podia celebrar a santa Missa.

            Porém, para atender satisfatoriamente o desejo geral e a expec­tativa dos moradores de Serravalle e de todos os devotos da santa, no dia 11 de maio de 1754, o papa Bento XIV reconhecia e aprovava, solenemente e com Decreto Apostólico, o culto prestado desde tempos muito antigos à nossa mártir, com o título de Padroeira e Protetora de Serravalle. Com este decreto, a Igreja confirmava o título de Santa que a voz do povo de Serravalle e a tradição desde os primeiros tempos e nos séculos sucessivos quiseram dar à mais ilustre filha do lugar.

            E Serravalle guarda o acontecimento com grande elevação de espírito e o recorda vivamente numa magnífica demonstração espiri­tual de devoção através dos séculos.

 

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